A foto é emblemática. Um cavalo no telhado de uma casa, olhando para a água que o cerca. Sem enxergar um palmo de terra firme que a encoraje a sair do desconforto. Na maior tragédia pluviométrica que assola o Rio Grande do Sul, o cavalo Caramelo, de Canoas, uma das cidades inundadas pelas enchentes, simboliza a perplexidade que toma conta não apenas dos gaúchos, mas de todos os brasileiros que nunca viram cenas tão devastadoras e intensas quanto as que lhe são expostas pela teia midiática. A cena de uma garotinha pedindo que o barqueiro pegasse uma boneca que flutuava na água é comovente. A boneca era um bebê. Realismo fantástico.
O Brasil vive um momento de triste perplexidade. Sem entender como e porque um Estado tão bem-dotado de infraestrutura, um dos mais desenvolvidos da Federação, a 5ª. maior economia nacional, seja impiedosamente destruído por precipitações pluviométricas. Como não se previu tamanha calamidade? Como tem sido possível que os danos às pessoas sejam de tal monta, que a vida de centenas de famílias seja jogada no despenhadeiro? Nietzche, o magistral filósofo, prenunciou: a ampulheta do tempo, vira e mexe, impõe o eterno recomeço como nosso conceito de devir.
A cada estação do ano, o Brasil ganha as cenas de vidas destroçadas. Vai, aqui, pequena memória.
Em 1975, um vazamento de 6 mil toneladas de óleo, do petroleiro Tarik Iba Ziyad, fretado pela Petrobras, contaminou a baía de Guanabara. O maior vazamento de óleo no Brasil. Em 1980, no Vale da Morte, em Cubatão, a liberação de gases tóxicos por indústrias do polo petroquímico, aumentou os problemas de saúde na região. Ainda em Cubatão, em 1984, na Vila Socó, um grande incêndio matou 93 pessoas. Falha na tubulação. Em 1987, foi a vez de Goiânia, com o acidente radiológico com um aparelho de radioterapia abandonado, dentro do qual estava uma cápsula de césio-137. Outro vazamento de óleo na baía de Guanabara, em 2000; responsabilidade da Petrobras. 25 praias contaminadas. Ainda em 2000, no Paraná, houve um vazamento de óleo nos rios Barigui e Iguaçu. 4 milhões de litros de óleo. Vimos, em 2001, o naufrágio da plataforma P-36, na bacia de Campos, que despejou 1500 toneladas de óleo a bordo, matando 11 pessoas. A seguir, em 2003, a indústria Cataguases, em Minas Gerais, despejou 1 bilhão e 400 milhões de lixívia nas águas da bacia hidrográfica do Paraíba do Sul. Em 2007, o rompimento de barragem Bom Jardim em MG. Em 2011, outro vazamento de óleo na bacia de Campos, RJ. No porto de Santos, em 2015, ocorreu o incêndio na Ultracargo, durante transferência de tanques de gasolina e etanol. Ainda em 2015, houve o vazamento da barragem do Fundão, em Mariana, MG, com 62 milhões de m3 de lama. Responsabilidade da empresa Samarco.
Em janeiro de 2019, em Brumadinho, MG, viu-se um dos maiores desastres ambientais no Brasil, com o rompimento da barragem Mina do Feijão, sob responsabilidade da companhia Vale do Rio Doce. 270 mortos. Uma tragédia. E agora, a tragédia das tragédias, essa que conta mais de 100 mortos, atinge 83% dos municípios gaúchos e deixa mais de meio milhão de pessoas ao relento. O que essa calamidade expressa? Primeiro, a ausência de políticas voltadas para a prevenção de catástrofes. As forças naturais recebem as críticas, mas a mãe natureza não tem tanta culpa. A obra de devastação a cargo do homem, em sua incessante obstinação para apressar o fim do planeta, é a principal responsável por catástrofes. Quantos parlamentares dedicaram verbas para a prevenção de enchentes? Um, dois, três? Os homens públicos deveriam ir ao paredão da vergonha por não construírem barreiras preventivas nos espaços que administram.
O trabalho voluntário mostra a solidariedade de brasileiros na tragédia gaúcha. E serve de bálsamo para amenizar a dor de milhares de aflitos. Mas é isso que sobra ante a maré de improvisação que grassa na administração de Estados e municípios. Para arrematar o mosaico de desleixo, competências constitucionais são distribuídas de maneira irregular entre os entes federativos. União, estados e municípios repartem áreas comuns como serviços sociais, meio-ambiente e habitação etc. O resultado é uma sobreposição de ações, particularmente nos palanques midiáticos, aqueles que impressionam eleitores. Projetos escondidos, como os de saneamento, são relegados ao segundo plano. Um governo eficaz é aquele com aptidão para prever problemas e antecipar soluções.
É triste concluir que as calamidades de hoje se repetiram no passado e serão vividas no amanhã. Um eterno retorno, um eterno recomeço. O olhar de Caramelo, o cavalo no telhado, parece responder ao presidente Lula, que fez a provocação: o que estaria ela pensando? Ora, pensando na malandragem que dita a conduta de demagogos, oportunistas, gente que tenta tirar proveito da miséria humana.
*Gaudêncio Torquato é escritor, jornalista, professor titular da USP e consultor político